domingo, 13 de março de 2011

Da série: uma carta aos domingos

Aceitando o desafio proposto pelo Rogério aos colaboradores e leitores do blog, posto aqui uma “tradução caseira” de uma parte da correspondência entre Nietzsche e Peter Gast do ano de 1885 acerca de um livro publicado neste mesmo ano. Trata-se do livro do amigo de Peter Gast e conhecido de Nietzsche, Paul Widemann: Erkennen und Sein. Lösung des Problems des Idealen und Realen, zugleich eine Erörterung des richtigen Ausgangspunktes und der Principien der Philosophie (Conhecimento e Ser. Solução do problema do ideal e do real, e uma explicação do correto ponto de partida e dos princípios da filosofia). A importância dessa correspondência me parece estar no fato de ela lançar uma luz na compreensão de alguns pressupostos teóricos envolvidos na tentativa de Nietzsche de provar cientificamente a tese do eterno retorno, assim como de alguns dos aspectos da sua posição com relação à interpretação mecanicista do mundo. Nietzsche e Peter Gast parecem concordar em quase todos os pontos mencionados na correspondência: impossibilidade de um estado de repouso no devir, indestrutibilidade da força ou da energia no universo, eternidade do tempo. Porém, um dos aspectos problemáticos das considerações de Nietzsche sobre o eterno retorno me parece ser o fato de encontrarmos, entre as premissas dessa tese, pressupostos teóricos que são em certa medida tributários de uma visão mecanicista do mundo, visão que Nietzsche pretende superar propondo um modelo puramente dinâmico. Alguns fragmentos póstumos que tematizam o eterno retorno são marcados por essa ambivalência. Eu me refiro aqui particularmente às considerações de Nietzsche sobre o espaço. Dentre as críticas de Nietzsche ao mecanicismo encontramos a negação de um espaço real, isto é, Nietzsche parece defender a tese de que o espaço é um construto da representação, uma “forma subjetiva”, ao contrário do tempo. Nossa representação do espaço seria, em última instância, dependente da nossa representação da matéria como substância extensa. Mas entre as premissas da tese do eterno retorno encontramos a afirmação de um espaço real, finito e determinado, apesar do conceito substancialista de matéria ser rejeitado. Se atentarmos à fórmula apresentada por Peter Gast na última carta citada aqui (que parece corresponder também à posição de Nietzsche), a negação da matéria deveria implicar a negação do espaço, ou seja, um modelo puramente dinâmico de forças deve ter por base uma dimensão puramente temporal. A questão que se coloca é se a tese do eterno retorno, considerando-se seus pressupostos teóricos, é ainda tributária de uma certa interpretação mecanicista do mundo (no sentido em que Nietzsche a compreende). Esse parece ser o caso, especialmente se levarmos em conta a carta de Nietzsche a Peter Gast que segue abaixo (alguns fragmentos póstumos da década de 80 também corroboram essa suspeita). A forma como avaliamos o estatuto da tese do eterno retorno no interior da filosofia de Nietzsche pode depender de como respondemos a essa questão.

Claro que o pano de fundo teórico sobre o qual Nietzsche tentou desenvolver uma prova científica do eterno retorno é muito mais amplo do que o apresentado nessas breves considerações e envolve um importante diálogo com a termodinâmica da época. Uma análise detalhada desse diálogo se encontra em Abel, G. Die Dynamik der Willen zur Macht und die ewige Wiederkehr e em Mittasch, A. Friedrich Nietzsche als Naturphilosoph. Abel defende que a tese do eterno retorno não envolve pressupostos mecanicistas. Mittasch, ao contrário, vê em alguns aspectos da tese uma recaída ou uma manutenção de premissas teóricas tributárias de uma visão mecanicista.

Uma última observação: na versão citada por Mittasch, em seu livro, da segunda carta postada aqui (a carta de Nietzsche a Peter Gast), ao invés de “minha interpretação mecanicista do mundo” (meiner mechanistischen Weltausdeutung), segundo KGB III/3, p. 69, consta “uma interpretação mecanicista do mundo” (einer mechanistischen Weltausdeutung).


Trecho da carta de Heinrich Köselitz (Peter Gast) à Nietzsche de 7 de julho de 1885, KGB III/4, p. 35:

O senhor recebeu o livro de Widemann? Ele não é escrito com uma energia descomunal do pensamento? Eu ainda não encontrei disposição para uma leitura propriamente dita, eu apenas folheei-o. A infinitude do tempo é questionada, até onde vejo. Na p. 151 encontramos até mesmo uma descrição do estado da matéria na atemporalidade: toda força em equilíbrio! em um bloco de matéria! Cada partícula desse bloco, porém, sofre e exerce uma pressão diferente da outra. E caso um equilíbrio da força, um estado de repouso, permanência, atemporalidade, fosse realmente possível, nesse caso precisamos de um primum movens. Indestrutibilidade da força significa para mim eternidade da força, eterna impossibilidade de um equilíbrio termodinâmico, estado do qual não poderíamos mais sair.


Resposta de Nietzsche à Peter Gast, trecho da carta de 23 de julho de 1885, KGB III/3, p. 69.

O pensamento que você manifesta com relação ao senhor Widemann me é muito bem-vindo: envie-lhe um exemplar [do Zaratustra] de tal forma que também meu interesse e simpatia sejam visíveis, como uma forma de cumprimento pela conclusão de sua obra. Eu não a conheço: o que você menciona sobre “estados de equilíbrio” e “indestrutibilidade da força” pertence também aos meus artigos de fé. Mas nós temos Dühring contra nós: por acaso eu acabo de encontrar essa bela frase: “o estado originário do universo, ou dito mais claramente, de um ser imutável da matéria, que não comporta nenhuma agregação temporal de diversidades, é uma questão que somente um entendimento que vê na mutilação de sua força gerativa o ápice da sabedoria pode rejeitar”. Esse “maquinista” berlinense nos toma, pois, meu caro amigo, por castrati: ao menos eu espero que nós tenhamos uma reparação por tal carência no fato de nós “cantarmos de forma mais bela” que o senhor Dühring. Eu não conheço tom mais asqueroso que o seu. - Que eu considero o espaço “finito”, isto é, configurado de forma determinada, como irrecusável no sentido da minha interpretação mecanicista do mundo, e que a impossibilidade de um estado de equilíbrio me parece estar associada à questão de como o espaço global é configurado – certamente ele não é esférico! - isso eu já lhe disse pessoalmente.


Resposta de Peter Gast à Nietzsche, trecho da carta de 29 de julho de 1885, KGB III/4, p. 42-43.

Nesse meio tempo o senhor terá recebido o livro de Widemann, ele me escreveu dizendo que tomara a liberdade de lho enviar. Eu acredito que é mais por amor a uma simetria que ele se atém à finitude do tempo (como à finitude do espaço.)* / * Sua simetria é: espaço = finito / tempo = finito, / mas ela provavelmente deve ser a seguinte: espaço = indissociável da matéria (mit der Materie unaufheblich) / tempo = indissociável da força (mit der Kraft unaufheblich). / Espaço e tempo são, naturalmente, meros atributos da matéria e da força, e não existem sem estas: toda força e toda matéria em equilíbrio, em repouso, seria a atemporalidade, ausência de mudança. Eu havia escrito a Widemann minhas objeções contra seu tempo finito, o que pra mim significa: contra a cessação da força. Ele me disse, ao contrário: que eu poderia facilmente imaginar a força em equilíbrio, a saber, estaticamente. Equilíbrio da força não seria de modo algum equivalência das funções de todas as partes (daquele bloco), mas sim o repouso de todas as partes no todo, como por exemplo no caso de uma balança em repouso. Conservação da força não significaria de forma alguma impossibilidade de equilíbrio; pois peso ou coesão e afins seriam também forças e admitiriam muito bem equilíbrio, isto é, repouso. Sendo assim: o tempo existiria, antes, apenas como velocidade do movimento. Todo movimento, porém, tende ao repouso e precipita-se rumo a um ponto de repouso.

Mas eu, pobre diabo, não percebo aquele repouso estático como repouso. Uma balança, uma arcada são para mim substâncias que estão ininterruptamente trabalhando e se modificando internamente. Aquele bloco do qual Widemann fala na p. 151 me parece absolutamente impossível.

2 comentários:

  1. Obrigado pelo post William. A carta que eu tinha em mente para este domingo tratava de questões inteiramente diversas e senti um grande alívio por poder retardar a sua publicação e ganhar um tempo para refletir um pouco mais sobre o seu significado. Por outro lado, é muito interessante abandonar a atmosfera do jovem Nietzsche e ter repentinamente que se orientar no espaço aberto pela especulação do início da segunda metade dos anos 80. Nietzsche está no auge de sua ousadia especulativa, e isso fornece um interessante contraponto às cartas que havíamos publicado até então, nas quais predomina uma preocupação com os efeitos práticos da especulação, pensada à luz da doutrina de Lange. O propósito edificante não desaparece no último Nietzsche, mas seu vínculo com a especulação se torna bem mais sutil e quase que secreto.
    Sobre as implicações desta troca de cartas entre Peter Gast e Nietzsche espero poder escrever mais tarde algo menos improvisado.
    Até breve,
    Rogério.

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  2. Olá Rogério!

    Vc tem razão, nos deslocamos aqui quase duas décadas e isso abre um horizonte bastante novo com relação às considerações do jovem Nietzsche, o que não significa que não haja pontos de intercessão. Também acho que o projeto de edificação ainda esteja presente no último Nietzsche e, nesse sentido, acredito que a tese do eterno retorno pode nos oferecer uma nova imagem da relação ambivalente entre propósitos teóricos e propósitos edificantes. Estarei aguardando ansioso suas considerações sobre essa correspondência entre Nietzsche e Peter Gast.

    Um abraço!

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