domingo, 27 de março de 2011

Da série: uma carta aos domingos

Escolhi para este domingo dois trechos da correspondência do ano de 1871. O primeiro trecho é menos significativo, mas documenta a reação imediata de Nietzsche à falsa notícia de que os revoltosos da Comuna de Paris haviam incendiado o Louvre em 24 de maio de 1871. A carta é dirigida ao Conselheiro Wilhelm Vischer, da Universidade de Basel, e Nietzsche a escreve com o propósito de se justificar por não ter estado presente à sessão de conferência do Paedagogium (espécie de curso de segundo grau ou Liceu ligado à Universidade e no qual Nietzsche teve uma participação muito ativa como professor, sendo muito querido entre os estudantes). O segundo trecho é de uma carta enviada por Nietzsche ao amigo Carl von Gersdorff após o seu retorno da guerra franco-prussiana. Nela Nietzsche retoma, quase um mês depois, o tema da carta a Vischer: o efeito devastador que a notícia do incêndio do Louvre causou sobre ele. Mas antes de descrever este evento, caracterizando-o como o evento mais revelador do embate trágico e dos custos da cultura, Nietzsche comunica ao amigo algumas de suas impressões mais imediatas da guerra franco-prussiana. É importante notar que neste momento Nietzsche ainda não temia os seus efeitos negativos sobre a cultura alemã. Este diagnóstico surgirá por ocasião das Considerações Extemporâneas (Na Consideração Extemporânea sobre a história este diagnóstico já se converteu em uma certeza e o tom predominante é amargo e desesperançado). Mas em 1871 Nietzsche se deixa contaminar pelo ufanismo da vitória militar recente, embora seja lúcido o suficiente para enfatizar que as virtudes germânicas que se tornaram visíveis durante o conflito bélico devem ser canalizadas para as tarefas que realmente interessam, quais sejam, as tarefas da cultura, que só podem se impor em tempos de paz. Neste sentido, o primeiro parágrafo da carta de Nietzsche a Gersdorff é quase uma convocatória para que o amigo retome esta tarefa da cultura. A esperança de Nietzsche em uma renovação da cultura alemã, que está bastante presente na primeira metade dos anos 70, tem uma conexão importante com os fatos da guerra franco-prussiana: Nietzsche cultiva a esperança de que as virtudes militares possam ser de fato canalizadas e transferidas para os combates no terreno da cultura. Seu grande temor é que o estado monopolize esta grande energia liberada por ocasião dos eventos bélicos. Aqui, como em outros momentos da obra de Nietzsche, o pior equívoco interpretativo consiste em tomar a letra do texto (ou menos do que a letra) e propor uma leitura política do filósofo, quando o que de fato ocorre é uma tentativa desesperada de atuar no sentido de desviar para a cultura aquelas energias que tendem a se descarregar no campo do político.
Por fim, um último comentário. A oposição de Nietzsche ao socialismo, que perdura ao longo de toda a sua obra, tem aqui a sua primeira expressão literária. O filósofo jamais se libertará da convicção de que as reivindicações de igualdade e de justiça social que caracterizam os movimentos de emancipação da classe trabalhadora na segunda metade do século XIX na Europa possam se compatíveis com o engajamento que ele julga necessário para a existência de uma verdadeira cultura. Embora a notícia do incêndio do Louvre fosse falsa, e Nietzsche demorou algum tempo para descobrir isso, ela no entanto sinalizava para uma possibilidade que, aos olhos do filósofo, era dramaticamente concreta. Este temor, em parte justificado, em parte irracional, contribui em alguma medida para fixar a referida convicção de que haveria uma oposição entre o movimento socialista e o engajamento em prol da cultura. Mas ele não pode, por si só, explicar o fato de que Nietzsche tenha chegado a considerar esta oposição uma oposição de princípio. Outras razões devem tê-lo levado a esta conclusão extrema. Sobre isso falaremos em outra ocasião.
Um bom domingo para todos. Com vocês um Nietzsche algo histérico, mas nem por isso menos comovente.

Carta de Nietzsche ao conselheiro Wilhelm Vischer (-Bilfinger) em Basel, datada de 27 de maio de 1871.

Tenho que me desculpar muitíssimo por não ter estado presente ontem à sessão da conferência do Instituto; por um acaso o convite para a sessão só me chegou às mãos uma hora depois de iniciada, quando já era tarde demais.

As notícias dos últimos dias foram tão terríveis que eu não chego a recobrar uma disposição de espírito ao menos passável. O que é um erudito face a tais terremotos da cultura! Quão atomizado nos sentimos! Empregamos toda a nossa vida e as nossas melhores energias para compreender e explicar melhor a cultura de uma época; de que vale esta profissão se um único e mísero dia reduz a cinzas os mais preciosos documentos de tais épocas! Este é o pior dia de minha vida. – [...]


Carta enviada de Basel a Carl von Gersdorff em Marienbad, datada de 21 de junho de 1871.


Meu caro, querido amigo,

Então eis que estás de volta ao lar, e para a minha alegria salvo e integer (intacto) após colossais perigos. Enfim podes de novo pensar em ocupações e tarefas pacíficas e considerar os temíveis episódios de guerra como um sonho sério, mas já desvanecido em sua vida. Agora novos deveres se anunciam; e se agora, em tempos de paz, alguma coisa nos deve ficar daquele selvagem jogo de guerra, será o espírito heróico e ao mesmo tempo sensato que eu, para a minha surpresa, e ao modo de uma bela e inesperada descoberta, encontrei fresco e vigoroso em nosso exército, na velha saúde germânica. Sobre isso é possível edificar; é permitido uma vez mais ter esperanças! Nossa missão germânica ainda não se esgotou! Me sinto mais encorajado que nunca; pois nem tudo se perdeu na superficialidade e “elegância” judaico-francesa e na sôfrega agitação do “tempo presente”. Com efeito, ainda há coragem, mais precisamente coragem germânica, que é interiormente algo distinta do élan de nossos lastimáveis vizinhos.

O que nos causou espanto, para além da luta das nações, foi a cabeça de hidra internacional que veio à luz subitamente e de forma tão terrível, como sinal de lutas futuras inteiramente distintas. Se pudéssemos conversar pessoalmente, nós com certeza concordaríamos acerca de em que medida precisamente neste fenômeno a nossa vida moderna e, de modo geral, toda a velha Europa cristã e seu estado, mas sobretudo a “civilização” romana, que agora se tornou dominante em toda parte, revelam o enorme mal inerente ao nosso mundo; concordaríamos acerca de em que medida todos nós, com todo o nosso passado, somos culpados pelos horrores que vieram à luz; de tal modo que precisamos evitar ao máximo querer imputar, com elevada presunção, somente àqueles desafortunados o crime de lutar contra a cultura. Quando tomei conhecimento do incêndio de Paris, fiquei durante alguns dias inteiramente arrasado e desfeito em lágrimas e dúvidas; se um único dia bastava para suprimir as mais esplêndidas obras de arte e até mesmo épocas inteiras da arte, então toda a existência dedicada à arte, à filosofia e à ciência me pareciam um absurdo; eu me apeguei com séria convicção ao valor metafísico da arte, que não pode existir em razão dos míseros seres humanos, tendo antes uma missão mais elevada a cumprir. Mas mesmo na dor mais intensa não fui capaz de atirar uma única pedra àqueles sacrílegos, que para mim eram apenas os portadores de uma culpa universal, sobre a qual há muito o que pensar! – [...]



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