domingo, 10 de abril de 2011

Da série: uma carta aos domingos

O fim de semana no interior, rendendo devida homenagem aos deuses familiares, me roubou a manhã de domingo que dedico à tarefa de traduzir e comentar uma carta previamente selecionada de Nietzsche. Para não frustrar os leitores deste blog e manter a proposta de uma carta por domingo, recorro a um expediente que alguns de vocês não considerarão de todo honesto: publico a tradução de um trecho de um cartão postal que Nietzsche enviou de Gênova ao amigo Franz Overbeck na Basiléia. O cartão é datado de 22 de outubro de 1883. Este trecho serviu de mote para a conferência sobre esoterismo e platonismo político que apresentei no belíssimo evento sobre Nietzsche ocorrido na PUC do Paraná novembro passado. Este trecho deveria servir de advertência a todos aqueles que supõem que o antagonismo entre Nietzsche e Platão pode ser devidamente compreendido a partir da caricatura da doutrina dos dois mundos. Definitivamente, Nietzsche não é um filósofo confiável. É difícil resistir à conjetura de que há certa dose de perversão e crueldade no modo como ele concebe os seus textos. Não chego ao extremo de afirmar com Heidegger que tudo que Nietzsche publicou era fachada para ocultar sua verdadeira filosofia, que deveria ser buscada nos póstumos. Pelo contrário, julgo que esta opinião tem ela mesma um quê de perversão filológica. Mas devemos convir que Nietzsche se esmerou em espalhar pelos seus livros (principalmente nas obras do período de maturidade) inúmeras armadilhas para pássaros incautos. Dito claramente, há nestes textos verdadeiros dispositivos para ridicularizar nossa credulidade.
O trecho a que fiz referência merece ser longamente ruminado, mas uma leitura a partir das fontes também pode ser muito eficaz no sentido de nos proteger contra a sedução das interpretações extremadas. A questão é se queremos nos proteger contra isso. Afinal de contas, a credulidade pode ainda ser uma opção. Boa degustação.


Cartão postal enviado por Nietzsche a Franz Overbeck, e datado de 22 de outubro de 1883.

Querido e velho amigo, lendo Teichmüller fiquei cada vez mais estarrecido de espanto diante do quão pouco eu conheço Platão e do quanto meu Zaratustra πλατονίζει [platoniza]. [...]

Nota: Nietzsche se refere ao livro do helenista Gustav Teichmüller, Studien zur Geschichte der Begriffe (1874). Há dois longos capítulos sobre Platão neste volume de Teichmüller. Nos estudos platônicos ele ganhou relativa notoriedade por polemizar contra Eduard Zeller, recusando seus principais resultados e sua metodologia. Teichmüller antecipa em muitas décadas a tese hoje associada a Léo Strauss segundo a qual ao lermos Platão precisamos ser capazes de discriminar entre o componente esotérico e o componente exotérico dos Diálogos, entre o Platão filósofo e o Platão poeta e criador de mitos para fins de persuasão da pólis.




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