domingo, 17 de abril de 2011

Da série: uma carta aos domingos

As razões pelas quais escolhi o trecho de hoje são as seguintes: ele está em continuidade temática com a última postagem desta série (o modo como Nietzsche compreendia sua oposição a Platão) e reforça a sua principal tese (do caráter complexo e em última instância enigmático desta oposição). Além disso, há uma razão pessoal para a escolha de hoje: embora estas poucas linhas endereçadas por Nietzsche ao amigo Paul Deussen tenham causado em mim uma especial comoção, nunca pude discernir claramente os motivos que me levavam a reagir deste modo. Suponho que metade da resposta encontra-se no que é dito por Nietzsche, e a outra metade encontra-se nas circunstâncias em que isso é dito. O que é dito é muito simples: Nietzsche agradece o gesto de Deussen, que havia enviado de Atenas folhas de louro e de figo colhidas por ele na data do último aniversário de Nietzsche (15 de outubro de 1887) do local onde supostamente teria sido a Academia de Platão. Nietzsche comenta o gesto de Deussen, que o teria tocado profundamente, em duas cartas: a primeira a Peter Gast, datada de 02/03 de novembro de 1887; e a segunda a Franz Overbeck, datada de 12 de novembro de 1887.

Este belo gesto de Deussen foi o coroamento de um gesto anterior, que sinalizava o desejo de se reaproximar de Nietzsche após anos de um progressivo afastamento: sua visita inesperada a Sils-Maria entre os dias primeiro e três de setembro de 1887. Deussen fez um pequeno e amável desvio por Sils-Maria durante sua viagem de núpcias ao sul da Europa. O itinerário da viagem a ser realizado por Deussen e sua jovem esposa é descrito por Nietzsche em carta a Emily Fynn de 07 de setembro de 1887. Esta visita surpreendeu Nietzsche e o tocou profundamente, conforme ele relata a Peter Gast em carta de 08 de setembro de 1887 (na qual ele comenta o significado histórico da nomeação de Deussen para a cátedra de filosofia da Universidade de Berlim, a primeira cátedra a ser ocupada por um schopenhaueriano confesso e pelo único autêntico conhecedor da filosofia oriental em atividade na Europa) e a Carl von Gersdorff em 20 de dezembro de 1887.

Cartas como a de 20 de dezembro de 1887 a Gersdorff e a de 03 de janeiro de 1888 a Paul Deussen revelam a imensa solidão na qual Nietzsche se encontra na fase derradeira de sua produção filosófica. Elas são uma tentativa tímida e cautelosa de resgatar a memória de um passado de esperanças compartilhadas; mas elas são simultaneamente a confissão dolorosa de que aquelas esperanças eram baseadas em uma ilusão voluntária de compartilhar algo e de que o sentimento presente de total isolamento representa mais fielmente sua verdadeira condição e natureza íntima: o sentir-se convocado a uma tarefa cuja necessidade nenhum contemporâneo percebe. Justamente a consciência desta tarefa e de suas implicações é o que confere ao que é dito no cartão postal de novembro de 1887 a Paul Deussen o seu caráter comovente: Nietzsche confere a um evento pessoal (o gesto de reaproximação de um amigo de adolescência) uma simbologia de alcance histórico-universal, interpretando-o como cifra que permite revelar sua própria tarefa principal como a de uma oposição radical ao projeto civilizatório do ocidente cristalizado na figura de Platão. Nietzsche interpreta seu isolamento como o ônus que se tem que pagar ao tentar se colocar à altura de tal tarefa. Este trecho anuncia uma das principais tendências do último ano de atividade consciente de Nietzsche, a tendência a se auto-estilizar e ver a si mesmo como um destino histórico-universal.


Cartão Postal de Nietzsche a Paul Deussen, 16 de novembro de 1887.

Querido amigo,

Após sua odisséia, você terá agora novamente aportado, de forma venturosa, no porto seguro de sua profissão: desejo a você um inverno feliz e pródigo em discípulos e um avanço sob todos os aspectos em sua trajetória (sem obstáculo, sem “quarentena” –). A bela simbologia de seu gesto em 15 de outubro me tocou profundamente: – não será este velho Platão meu grande e autêntico oponente? Mas quão orgulhoso eu sou por ter um tal oponente! – Permaneça sempre caro a mim!

Seu Nietzsche.

Uma afetuosa saudação à sua pequena e brava companheira!

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