domingo, 24 de abril de 2011

Da série: uma carta aos domingos

Selecionei para o domingo de páscoa trechos de uma carta que Nietzsche envia a Lou provavelmente no dia 16 de setembro de 1882 e que nos mantém, de forma um tanto enviesada, no tema dos últimos posts: o de sua relação com Platão e com o platonismo. Nestes dois trechos que selecionei Nietzsche visita um dos temas centrais de sua concepção da filosofia: seu valor confessional. As grandes filosofias são concebidas por Nietzsche como relatos confessionais involuntários. Esta concepção bastante pessoal da filosofia o leva, por sua vez, a propor uma historiografia filosófica igualmente pouco convencional, já que todos os esforços desta historiografia deveriam convergir para a tarefa de desvendar a personalidade do filósofo por trás de sua doxografia e dos demais registros de sua atividade. Nietzsche de fato praticou esta forma de historiografia aplicada à filosofia antiga nos textos (tantas vezes revistos) e nas notas destinadas aos cursos sobre os filósofos pré-platônicos e aos cursos de introdução aos diálogos de Platão. Um dos principais recursos ou ferramentas metodológicas mobilizadas por Nietzsche para levar a bom termo esta tarefa historiográfica específica (de reconstituição de uma personalidade filosófica) foi a anedota. Nietzsche chegou ao ponto de afirmar, numa espécie de prefácio para a versão destinada à publicação de seus estudos sobre os filósofos pré-platônicos (A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, KSA, I: p. 803), que a sua ambição era reconstruir a imagem destes grandes filósofos a partir de três anedotas. O que pode soar como uma bravata ou boutade nietzscheana é na verdade a expressão de um surpreendente e corajoso desacordo em relação aos preceitos essenciais e à orientação fundamental da chamada historiografia crítica, cujos alicerces encontram-se na obra monumental de Pierre Bayle na virada do século XVII para o XVIII, e cujo detalhamento foi obra da chamada filologia crítica, elaborada por diversas gerações de filólogos universitários alemães. Este movimento de constituição da moderna historiografia crítica teve seu ponto de culminância na geração de Friedrich Ritschl, e conferiu à filologia o status de disciplina exemplar no conjunto das ciências da cultura, que estavam ainda dando os seus primeiros passos. Este movimento em direção a uma atitude mais científica em relação ao passado tendia a substituir a atitude de veneração e confiança em relação à tradição clássica, que marcou a recepção ético-estética da antiguidade clássica pelo classicismo de Weimar, por uma atitude de sistemática cautela e desconfiança e pela busca de procedimentos que permitissem submeter a totalidade dos documentos e registros da antiguidade a um impiedoso escrutínio crítico. Com isso era natural que a função normativa e educativa tradicionalmente associada ao ensino da antiguidade clássica pudesse ser legitimamente submetida a uma análise fria e detalhada de suas pretensões. Nietzsche se formou nesta tradição e esteve em parte imbuído de seus ideais de rigor e controle, o que pode ser evidenciado nos inúmeros póstumos dos anos de formação (1866-1868) que tratam de problemas metodológicos da filologia e de suas pretensões normativas no terreno da educação, assim como nas notas para a projetada extemporânea sobre os filólogos clássicos, que cobrem o período de 1875-1876. Mas o que o ocupou mais profundamente foi a tentativa de repensar as condições sob as quais o ensino da antiguidade clássica poderia manter suas pretensões normativas no terreno da cultura. Neste sentido, poderíamos afirmar que a tarefa de pensar uma historiografia filosófica orientada pela reconstrução da personalidade dos grandes filósofos é uma tomada de posição no interior do debate propriamente normativo, a favor de uma historiografia que não se quer puramente descritiva ou empiricamente orientada, mas que visa à exemplaridade de seus protagonistas e tipos. A tentativa de reabilitar a anedota como um recurso legítimo do historiador para ter acesso ao passado não se dá no plano de uma discussão metodológica acerca da confiabilidade epistêmica deste registro. A anedota não comunica nenhuma verdade empírica ou fatual. Ela é um recurso de condensação, um elemento de simplificação utilizado pela tradição para comunicar uma imagem coletivamente elaborada sobre uma personalidade marcante de sua época e de que o historiador se vale para reconstruir os tipos. Nietzsche usou (e talvez tenha até mesmo abusado) das anedotas produzidas pelos antigos envolvendo a figura de Platão.

A anedota não é, contudo, o único recurso que, segundo Nietzsche, permite ao historiador (normativamente engajado) reconstruir uma individualidade histórica. Uma das razões que levam Nietzsche a conferir imenso valor ao estilo é porque ele estava convicto de que é pelo estilo que temos acesso ao homem. Quando penso na valorização do estilo, não penso nas formas de exposição ou nos gêneros literários ou nos dispositivos retóricos adotados por Nietzsche, mas única e exclusivamente na dimensão pré-argumentativa da linguagem, na linguagem como fenômeno natural, submetida a regras que são mais próprias à música do que à prosa: extensão dos parágrafos, ritmo das frases, tamanho dos signos, andamento, etc. Não creio que Nietzsche pense nos aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos da linguagem (em tudo aquilo que diz respeito às regras convencionais da linguagem) quando ele se refere ao estilo: ele pensa na linguagem como um fenômeno natural, que toca exclusivamente à nossa sensibilidade e que é pura expressividade. Isso nos traz de volta a Platão e à avaliação ambígua desta personagem por parte de Nietzsche. Não há um juízo único de Nietzsche sobre Platão. Em Para Além de Bem e Mal, o maior manifesto de Nietzsche contra o platonismo, o filósofo recorre a uma anedota para registrar esta ambiguidade. No fechamento do aforismo 28, ele diz o seguinte: “nada me fez refletir mais sobre a reserva e a natureza esfíngica de Platão do que esse petit fait, felizmente conservado: que sob o travesseiro do seu leito de morte não se encontrou nenhuma ‘Bíblia’, nada egípcio, pitagórico, platônico – mas sim Aristófanes.” [cit. a partir da tradução de Paulo Cesar de Souza]. E no Crepúsculo dos Ídolos é a vez do estilo servir de apoio para marcar o desacordo fundamental com a personalidade de Platão que caracteriza as últimas obras de Nietzsche: “A respeito de Platão sou fundamentalmente cético e jamais pude partilhar a admiração pelo artista Platão, tradicional entre os eruditos. E nisso estão do meu lado os mais refinados juízes do gosto entre os próprios antigos. Platão, assim me parece, junta confusamente todas as formas de estilo, é o primeiro dédadent do estilo: carrega uma culpa semelhante à dos cínicos que inventaram a satura Menippea. Para achar graça no diálogo platônico, esse tipo de dialética espantosamente presunçoso e infantil, é preciso jamais ter lido os bons franceses – Fontenelle, por exemplo. Platão é entediante.” [cit. a partir da tradução de Paulo Cesar de Souza].


Carta enviada por Nietzsche de Leipzig a Lou von Salomé em Stibbe, provavelmente em 16 de setembro de 1882.

Minha querida Lou, sua ideia de reduzir os sistemas filosóficos aos atos pessoais de seus autores é realmente uma ideia nascida de “cérebros irmanados”; eu mesmo na Basiléia narrava a história da filosofia antiga nestes termos e gostava de dizer aos meus ouvintes: “este sistema está refutado e morto – mas a pessoa por trás dele é irrefutável, a pessoa não pode ser morta” – Platão, por exemplo.

Hoje te envio em anexo uma carta do professor Jacob Burckhardt, a quem você certa vez quis conhecer. Também ele tem algo de irrefutável em sua personalidade; mas justamente por ser um historiador no sentido pleno da palavra (o primeiro entre os vivos), a sua pessoa e o seu modo de ser, que lhe estão eternamente incorporados, não lhe trazem nenhuma satisfação; e a ele agradaria até mesmo muitíssimo se alguma vez pudesse ver com outros olhos, com os meus, por exemplo, como deixa entrever esta carta singular. [...]

2 comentários:

  1. Olá Rogério, o recurso ao anedótico por parte de Nietzsche torna-se ainda mais interessante e revelador se confrontado com a perspectiva hegeliana de que fazer a história da filosofia seria uma espécie de recosntituição do movimento do Conceito, da qual ficariam excluídos os gestos, a vida, a própria biografia dos filósofos. Isso traria à baila novamente uma série de personalidades filosóficas que, na ausência de escritos, legaram à posteridade a exemplaridade de uma forma de vida, como é o caso de algumas "escolas" filosóficas da antiguidade, que se perpetuaram muitas vezes tão somente pelo relato anedótico da vida de seus mestres.
    Daniel

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  2. Olá, eu teria muitas coisas a dizer sobre este post do rogério, na medida emque meu projeto atual sobre nietzsche e platão toca em todas essas questões levantadas por ele, embora por motivações nem sempre congruentes e, principalmente por caminhos bem diversos. ainda creio, por exemplo que a questão do estilo no sentido "literário" é muito importante. comentei longamente a mesma passagem de "crepúsculo dos ídolos" referida acima no texto que falei em pisa, há um ano atrás, no congresso do girn e creio ter boas razões para ter essa posição. só queria lembrar aqui que a passagem sobre a confusão estilística nos diálogos de platão no CI, retoma quase com as mesmas palavras, uma passagem de "Sócrates e a tragédia", de muitos anos antes. Interessante, no caso, é entender em que medida o contexto de CI amplia e aprofunda o comentário de ST. Abraço, Ernani.

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